Segurando entre os dedos um baseado já queimado pela metade, mas ainda num tamanho considerável, Antony Wilmot, conhecido como Billy Mystic, aproxima-se de mim. Estávamos a poucos metros do mar jamaicano, em Bull Bay, onde a figura de longos dreadlocks – grisalhos devido às cinco décadas de vida – mora e mantém o Jamnesia Surf Club. Em silêncio, Billy saca o isqueiro, acende seu baseado e dá uma tragada longa. Sem soltar a fumaça, peito estufado, vira e diz: “E então, o que você quer saber sobre os surfistas rastafáris?”. Na pequena mas crescente cena local, Billy é ícone de um grupo de surfistas que se destaca por mesclar dois estilos de vida, o dos rastafáris, quase religioso, e o dos surfistas, esse velho conhecido.
A reportagem da Trip foi até lá acompanhar três profissionais brasileiros que viajaram dispostos a descobrir como são as ondas da ilha. Acabou deparando com uma cena única, sob a bênção de Jah. “O fato de o surf ser algo ligado à natureza faz com que ele se assemelhe à cultura rasta”, diz Billy. E completa: “Uma pequena parte dos rastafáris jamaicanos surfa, mas boa parte dos surfistas é rasta”. Sua família é exemplo disso. Seus cinco filhos ostentam dreadlocks e exploram os picos que a Jamaica oferece. Tudo sem atropelo, já que o surf no país não é popular, apesar das ondas quebrando no sudeste da ilha.
Pelos cálculos de Billy, hoje na Jamaica há menos de 200 surfistas, profissionais ou não. Mulheres, não chega a dez. A número um do ranking, aliás, é sua filha Imani Wilmot, 18 anos, que é rasta, não fuma e ensina o esporte a crianças. “Temos quatro ou cinco nos campeonatos, e no máximo 10 surfando em toda a ilha. Às vezes fico mais de um mês sem ver outra surfista”, conta. A realidade contrasta com a idade do surf por lá. Billy entrou no mar pela primeira vez com uma prancha debaixo do braço no início dos anos 70. Dava para contar nos dedos quantos se arriscavam no mar, era a primeira geração de surfistas locais, ainda se acostumando com a vida depois da independência conquistada diante da Inglaterra na década anterior. A situação ficou assim até Billy fundar a Associação de Surf da Jamaica, em 1999, e ver o esporte começar a crescer. Para o mundo, contudo, o país ainda é apenas a terra do reggae, da maconha e dos rastafáris.
Dreadlocks no campeonato mundial
Com um envelope grande nas mãos, Billy desce a escada que liga sua casa ao surf club. Quer mostrar à reportagem um projeto no qual trabalha há algum tempo. De dentro do envelope, retira um livro com uma capa dura branca coberta por uma foto instigante: um surfista com largos dreadlocks passando com sua prancha em frente a uma gigantesca plantação de maconha – a foto só não está nesta página porque Billy não liberou, aliás. Sobre a imagem, a inscrição em letras douradas: Surf rasta – A história não contada do surf, style e música jamaicana de 1960 a 2010. Nas páginas internas, retratos antigos ilustram como os amantes de Jah começaram a encarar as ondas.
Pelos cálculos de billy, hoje na Jamaica há menos de 200 surfistas, profissionais ou não. Mulheres, não chegam a dez
Em parceria com a marca de surf australiana Insight, que patrocina a família Wilmot, Billy pretende lançar o livro no ano que vem. “A ideia é ilustrar o desenvolvimento do surf jamaicano, mostrando o que acontecia ao mesmo tempo na música e na cultura rasta. Nos anos 70 e 80 o país ganhou nome por conta do reggae e dos rastafáris, mas ninguém sabe que, paralelamente, o surf também se desenvolvia.” Para os filhos de Billy, o reggae, a vida rasta e o surf caminham juntos, numa combinação que, quem tem o privilégio de usufruir diz ser a mais prazerosa possível. Inilek Wilmot, 24 anos, por exemplo, pegou as primeiras ondas aos 7, já identificado com o lifestyle rastafári – o que, em seu caso, não inclui o baseado, por causa da asma.
Aqui vale uma breve explicação: na cultura rasta, fumar a ganja é uma espécie de ritual religioso, uma oferenda a Jah. A maioria dos rastas que ouvimos classifica sua cultura não como uma religião, mas como um estilo de vida, marcado por uma ligação estreita com a natureza (ponto que o aproxima do surf) e pela crença de que as relações humanas são mais importantes que qualquer bem material. O discurso sobre viver da forma mais natural possível está na ponta da língua de todos que ostentam dreadlocks. O cabelo, por sinal, também tem explicação religiosa. “Eles crescem de acordo com um voto, um agradecimeto a Deus por algo. Pode ser um voto de três anos ou uma semana.”
Dos nove campeonatos nacionais realizados no país, Inilek venceu quatro. Outros familiares levaram mais alguns, consolidando uma hegemonia dos rasta surfers. Seu irmão Icah planeja inclusive entrar para o circuito do WQS (World Qualifing Series) em 2010. Tudo isso sem ganhar um centavo em premiações. “Não tem dinheiro. É só pra dizer: ‘Eu fiz, sou o campeão nacional’.”, explica Inilek. A maior recompensa é mesmo a participação no ISA World Surfing Games – competição mundial da respeitada International Surfing Association. Desde 2002, os melhores surfistas da temporada vão ao torneio. Bons resultados eles nunca conseguiram, mas ninguém se preocupa com isso. Garantem que, mesmo sem estar entre os top, são idolatrados no evento.
Sean com a galera nas ruas de Kingston
Portas abertas da Jamnesia
Uma cena que vimos em um dia de semana qualquer ilustra bem essa paixão musical. Eram 11 da noite, e os instrumentos estavam só começando a ser ligados no quintal do Jamnesia. A banda de Inilek ia passar algumas músicas. Horas antes, o reggae ecoara em um estúdio de gravação improvisado por ali. Billy e sua banda, a Mystic Revealers, já lançaram cinco CDs, com direito a turnê pela Europa, e os filhos seguem o mesmo caminho. Quando o reggae deixa de ser ouvido no Jamnesia Surf Club, já passa de 1h30. Billy, que acompanhava o ensaio, dá a última tragada na ganja que tinha na mão. Vai dormir, quer acordar cedo para checar como está o swell nos picos que costuma frequentar e, quem sabe, poder surfar.
Brasileiros na área
“Jamaica? Mas lá dá onda?” O free surfer brasileiro Fernando Fanta não tinha resposta. “Nunca ouvi falar de surf por lá”, insistiam os amigos. Ótimo, esta era a ideia: ir para um lugar onde quase ninguém soubesse do potencial das ondas e garimpar a verdadeira cena surf local. Junto com os também surfistas Igor Morais e Yuri Castro, Fernando embarcou sem saber exatamente o que encontraria.
“A vibe no mar é muito boa. No Havaí, por exemplo, tem um localismo pesado. Aqui eles têm prazer de surfar com você. E não existe crowd”
Descobriu rapidamente, por exemplo, que a ilha pode ser dividida em duas partes: no norte ficam as praias paradisíacas e os resorts, e o mar é totalmente flat. As ondulações não chegam até ali porque são bloqueadas por uma proteção natural formada pela ilha que abriga Haiti e República Dominicana e por Cuba. Para os surfistas, a diversão está do outro lado, ao sul, perto da capital, Kingston. “Por ser de pedra, o fundo do mar daqui é o melhor pra formação de ondas”, explica Igor. Lighthouse, Makka e Copacabana – sim, lá também tem uma – são alguns dos picos mais conhecidos. Tudo bem que as ondas dificilmente chegam a 10 pés (uma das razões para a ilha não receber muitos surfistas de fora), mas pelo menos entram durante o ano inteiro.
O que a cena de surf jamaicana guarda de melhor, entretanto, é raro de encontrar pelo mundo. “A vibe no mar é muito boa. Não tem essa de ficar disputando onda. No Havaí, por exemplo, tem um localismo pesado. Aqui eles têm prazer de surfar com você, em te assistir. E não existe crowd”, resume Yuri. Assim, depois de duas semanas, Fernando pôde responder da pergunta que tanto lhe fizeram. Sim, na Jamaica há onda. E algo mais.
Repostagem e texto de Caio Ferreti,
Fotos Moisés Tupinambá
Nenhum comentário:
Postar um comentário